terça-feira, 3 de maio de 2011

Fomura

Há algum tempo, depois de uma daquelas conversas absolutamente mágicas e despretensiosas em um boteco qualquer em que a cerveja importa menos que a companhia, eu disse para uma amiga minha o que vinha pensando há alguns dias, sobre o que é a leitura, o ato de ler... Naquele dia eu senti no corpo o significado de uma frase de Paulo Freire, em que ele diz que, sem saber ler e escrever, o sujeito não poderia conhecer substancialmente o objeto. (É algo mais ou menos assim o que ele disse, depois posto aqui pois estou com preguiça de procurar agora.) A primeira vez que li esta frase foi durante minha pesquisa de Iniciação Científica, sobre o significado da alfabetização para idosos. E fez um puta sentido... marcou. Ficou ecoando dias dentro da minha cabeça.
Tentando ser um pouco mais objetiva, a questão que tento trazer com minhas simples palavras é que a leitura é mágica sim, mas mais mágica que a leitura por um indivíduo sozinho, é a leitura compartilhada. E leitura compartilhada não é ler junto, não é fazer um sarau; é a troca. Como é gostoso trocar textos, opiniões, dúvidas, questões, hipóteses... Sem essa de 'intelectualóide' (detesto isso/eles), trocar com amigos, sem se preocupar com coerência gramatical durante suas falas, deixando as palavras saírem de sua boca e de seus pensamentos desconexas, leves, despreocupadas... É incrível como o outro consegue por tantas vezes concluir uma idéia sua ou abalar suas certezas de uma maneira tão perturbadora e necessária, e esperada, e querida, e desejada.
Sempre depois desses felizes encontros eu fico pensando que é uma pena que tantas pessoas não possam ter isso. Algo tão simples e tão raro, tão vital. Para os jovens e crianças, a leitura pode parecer chata e sem muita utilidade. Mas só quem não possui as habilidades de leitura e escrita e vive numa sociedade letrada pode dizer o que estas habilidades verdadeiramente significam. Trabalhei com Educação de Jovens e Adultos, os alfabetizando... A busca deles pela leitura tinha uma beleza melancólica: o esforço, o fracasso, a perseverança, as primeiras palavras, o brilho no olhar, a paixão. Ler o mundo, ler as placas, ler as plantas, as paredes, as bulas de remédio, as revistas, os panfletos, os caminhos, sentimentos... Ler nada, ler qualquer coisa, ler tudo.
Enfim... tudo isso foi só pra dizer que hoje na JEIF uma professora levou uma delícia de texto que me trouxeram estes pensamentos à tona novamente... Enjoy!

"FOME, SEDE E VONTADE DE LER
(Fabiano Cambota)

Os biólogos, cientistas, cientificistas - enfim, qualquer estudioso do corpo humano - não cansam de afirmar e reafirmar a perfeição do corpo humano. A mais completa máquina já criada. O complexo sistema de células, órgãos, substâncias que sintetizam a perfeição. Pois tratemos de discordar. O corpo necessita de combustíveis. Se precisamos de água, temos sede. De comida, temos fome. Nunca paramos de respirar. Por que nos falta uma necessidade de ler? Alias, não há sequer um nome pra isso. Simplesmente “a necessidade de ler”. Algo como a manutenção da intelectualidade, ou da saúde do cérebro. Ler. Ler como quem mata a sede. Como quem avança sobre um prato de comida. Um copo de água bem gelada e uma Clarice. Uma lasanha e um Machado. Para todos os dias, arroz, feijão e Allan Poe.

A falta de leitura deveria ser retratada em fotografia premiada pela National Geographic. Concorrentes do “Foto do ano de 2004”: O menino faminto da Etiópia, a baleia encalhada da Antártida e o Sem-livro do Brasil. Deveria estar estampado na cara do sujeito: “Sou subletrado”.

Não se justifica com a situação do nosso país. Não se trata aqui da falta de incentivo e de educação, já notória e discutida. Mas de atitude.

Os jovens - ah, sempre os jovens – não conseguem, ou não querem, enxergar o benefício da leitura. Qualquer leitura. E os jovens crescem, ou já cresceram, subletrados. Daí a pergunta: E se houvesse uma necessidade física? Penso que ainda há o que mudar na estrutura humana. Que tal essa dica? Hein! Na falta de uma terminologia melhor, fica a “fome de leitura”, ou a FOMURA. O menino grita: “Manhêêê, to com uma fomura danada”. E ela vem correndo com a Ruth Rocha que é pro menino parar de reclamar. O pai, no meio da noite, acorda com o choro do bebê. Dá a mamadeira, troca a fralda e lê o Ziraldo enquanto o neném não consegue sozinho. O casal de namorados vai sair a noite. Jantar, choppinho ou leitura? O rapaz mais afoito sugeriria um João Ubaldo.. O divorciado um Nabokov. O mais esperto um Vinícius (sim, elas ainda adoram). E a combinação vinho, massa e Drummond? Irresistível.

O sonho enfim se concretizaria com o obeso-literato. Aquele que, de madrugada, assalta a estante. Acha que não faz mal um Parnasianismozinho durante as refeições. Vai ao médico, o letricionista, que lhe passa uma dieta a base de romance. Nada muito pesado. Depois das 20 horas, só Sidney Sheldon. Mas cai em tentação e é flagrado com “Crime e Castigo” nas mãos. A família se preocupa. Tornou-se um livrólatra. Só o L.A. poderá salvá-lo. Nas reuniões com o grupo de viciados em literatura, ele conta sua saga: “Bem, comecei aos 10 anos. Como todo mundo. Fadas, chapéus, narizes que cresciam. Depois eu parti pros livros menores. Mas quando você menos espera, já está devorando um Jorge Amado numa sentada só”. Um “ooh” ecoa na sala. Senhoras comentam entre si. “Tão novinho e tão letrado né!”
Bibliotecas lotadas.. Um silêncio ensurdecedor. Filas enormes para entrar. É muita gente morrendo de fomura. Consegue uma mesa, pede o menu.

- Por favor, me vê duas Cecílias. E pro menino pode ser um Lobato, que ele adora!!

- Senhor! Nossas Cecílias acabaram.

- O quê? E o que você sugere?

- Nosso Eça é legítimo, senhor! E temos Camões

- É que os portugueses são caros né! E meu médico me proibiu Camões durante a semana.

- Algum Andrade?

- Não sei. Não sei.. Tô indeciso ainda.

Depois de alguns minutos pensando e testando a paciência do rapaz que lhe servia...

- Ah, vou de Paulo Coelho mesmo que é só pra matar a fomura."